Sabine Mendes Moura
"A vida é apenas um sonho"*
Atualizado: 23 de abr. de 2020
ou quando a escrita acaba.

Dia desses, assisti a Lembranças de Hollywood de novo. Para quem não viu, é um filme de 1990, roteirizado por Carrie Fisher (mais conhecida como princesa Léa) e baseado em um romance autobiográfico em que Carrie aborda a convivência com sua mãe, Debbie Reynolds (mais conhecida como a moça de Cantando na Chuva). Adoro o título original do livro e do filme, difícil de traduzir, algo como "Cartões-Postais da Beira". Beira de quê? Do precipício? Do abismo? Diria que vêm do limite, quando sentimos que estamos prestes a perder o equilíbrio e escorregar da face da Terra, prestes a nos perdermos do resto da humanidade...
Quando escrevo, experimento momentos 'de beira', limbos e límbicos, ao final de um trabalho ou de uma etapa importante em um projeto. Especialmente, quando se trata de um trabalho longo como um romance, uma peça ou uma série de roteiros.
Muita energia foi investida ali e nem é só isso... O tipo de investimento realizado na criação de um mundo ficcional (atravessando a gente que nem linha de costura) lembra o título que dei a este texto. A vida é apenas um sonho? Bem, se não era enquanto eu escrevia, teve de passar a ser. Pelo menos, para mim. Tive de me conectar tão fortemente a algo que era apenas fruto de minha imaginação, que vivi nesse sonho por um bom tempo. Enfim, chega a hora do adeus. E, assim, damos início ao luto.
PERDAS E GANHOS
Em uma de minhas cenas favoritas de Lembranças de Hollywood, a personagem principal diz que não queria que 'a vida imitasse a Arte', queria que 'a vida fosse Arte'. Quando termino um trabalho autoral, sinto a mesma frustração. Por mais que eu tenha me dedicado com afinco e que meu sonho esteja ali, materializado em palavras, o despertador segue tocando às seis e os freelas seguem chegando (caso eu esteja com sorte!). Minha rotina segue tão rotineira quanto de costume. Não que o mundo tenha parado de girar enquanto eu escrevia. Mesmo assim, não sei bem explicar como, enquanto escrevo, tenho a esperança de que aquela obra em particular vá transcender os tempos de sempre: fazer da vida arte fora do papel.
Sei que o processo de luto pela 'perda' de uma obra acontece com outres criatives também. Precisamos de um tempo para processar a experiência de nos dedicarmos tanto a alguma coisa mesmo que a vida não pare. Nem sei se tenho muito a dizer sobre como lidar, porque, até bem pouco tempo, eu só entrava em negação: 'Passemos para a próxima que a fila anda!'. Acumulava tarefas e lutos sem permitir-me compreendê-los ou mesmo contemplá-los, apreciá-los. Dica um, então: concedam-se a permissão de viver o fim de seus processos de criação.
EFEITOS COLATERAIS
Nessas épocas, chego a odiar atividades que antes fazia com o pé nas costas (exemplo: colocar roupa na máquina). Posso engrossar ("Você NÃO ENTENDE o que é produzir um trabalho como esse") ou começar a falar mal da tal obra ("Apenas 5% do que eu PODERIA ter feito"). Posso importunar inocentes com resumos incompreensíveis do que acabei de escrever ("quando ela transcende em luz, fecha o ciclo iniciado no confronto com o pai. Autobiográfico, percebe?"). Aliás, caso você se depare com alguém parecido, acho mais fácil fingir que acompanhou o resumo e responder com associações bem livres. Estaremos tão encantades, agarrando-nos a qualquer fiapo de vínculo com a obra, que é provável que qualquer comentário se torne genial: concorde e mescle abstrações a uma ou duas palavras-chave copiadas do que dissemos.
Esse tal 'processar' não me parece ser opcional. A escolha que, sim, temos é a de como vamos passar por ele. Entrar em negação dificulta horrores: o luto buscará qualquer ínfimo espaço para se manifestar. Observando a mim mesma, descobri duas tendências. A primeira é que basta eu ter um momento de descanso para me ver invadida por: a) cenas que escrevi, b) formas de melhorá-las (depois que já as entreguei) e c) insights sobre o processo como um todo (inclusive, sob a forma de desenhos ou gráficos). Enfim, qualquer bobeada e minha mente volta ao tema.
A segunda tendência é um certo tipo de sono. Um cansaço profundo. Fico operando a 10% de minha capacidade. Quando sonho, adivinha o que acontece! De certa forma, a vida vira mesmo um grande sono-sonho. Isso pode gerar situações constrangedoras (experimenta ir a uma festa e só querer falar da geopolítica de um planeta inventado!). Se minha primeira dica foi "dê-se tempo", a dica dois é "busque formas de entrar em contato com o que a experiência foi para você" e a três seria "descanse ou será forçade a fazê-lo".
PROCESSANDO ENTÃO...
Tenho tentado, nos últimos anos, convencer-me de que posso me dar esse tempo. E a experiência me diz que ele não precisa ser longo. Às vezes, basta me tratar com carinho. Ou pedir para ficar sozinha por uma hora. Fechar os olhos um minutinho. Escrever sobre como estou me sentindo. Criar um diário de aprendizagens. Algo assim.
Uma última palavra sobre esse assunto: ando percebendo que, por mais infantil que seja, querer que a vida seja um sonho é algo fundamental. Está fadado ao fracasso, claro! Mas, em algum momento, todas as belezas e horrores que vemos por aí foram sonhados internamente.
Como diz Dario Ergas Benmayor, em seu livro O Olhar do Sentido , trazemos sonhos ao mundo, despedimo-nos deles e (passado o luto) convidamos novos sonhos a se achegarem.
Enquanto estamos com o sonho, acreditamos em um 'para sempre'. Quando nos despedimos, precisamos de um tempo para ver o que significou e o que fica daquela nossa última relação.
* no original "Life is but a dream". Referência à canção de ninar norte-americana "Row Row Row the Boat": https://en.wikipedia.org/wiki/Row,_Row,_Row_Your_Boat
Referências
O Olhar do Sentido de Dario Ergas Benmayor, foi traduzido por mim e publicado em 2019 pela Editora Presságio.
A PRIMEIRA VERSÃO DESTE TEXTO FOI PUBLICADA PELA REVISTA VIRTUAL NINHADA (2016), NA COLUNA COMO ESCREVER (E TER UMA VIDA AO MESMO TEMPO), COMO PARTE DO PROJETO DE ESCRITA COLABORATIVA DE MESMO NOME, PREMIADO PELO PROAC/SP.