Sabine Mendes Moura
Meu livro de estimação
Atualizado: 3 de mar. de 2020
Sabe aquele que você lê todo ano, já decorou e nem entende o porquê?
Conta o seu que eu conto o meu...

Tem gente que tem gato. Eu, por exemplo, tenho dois. Outros preferem cachorros. Posso dizer que são parte da família, mas de estimação mesmo eu só tenho um livro. Assim, bem específico. Repara que eu não estou falando de favoritos. Coisa difícil é você ser autora, editora e te perguntarem isso de "livro favorito." A resposta é: "Não tem." Agora, #livrodeestimação são outros quinhentos...
UM MORRO EM QUE VENTAVA À BEÇA
Estou relendo O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë no original em inglês. Já li esse livro algumas (leia-se: muitas) vezes, em inglês e em português. Vi os filmes de 39 e 92 (gosto mais do segundo: é mais fiel ao livro e sempre tive uma quedinha pela Juliette Binoche).
Tentei cantar essa história alcançando os agudos de Kate Bush, embora tenha descoberto a letra da música inspirada no livro via Angra. Devo confessar que é bem mais fácil competir com os agudos do vocalista do Angra, mas também acabei baixando a versão da música em italiano (sim, era uma época em que se baixavam coisas #mejulguem):
EU DECOREI A VERSÃO EM ITALIANO. NÃO, EU NÃO SOU EXATAMENTE UMA FALANTE DE ITALIANO.
Enfim, sou obcecada pela história. É uma "história de estimação." Lembro-me que, aos 28 anos, eu já era bastante fã e estava começando a poder comprar livros - até então, lia exemplares de bibliotecas, de amigos, enfim, a gente se vira. Um belo dia, ao buscar na estante meu Morro Ventante para a tradicional leitura anual, descobri que ainda não tinha lido aquele exemplar específico (da Penguin Books, a etiqueta de 6 reais ainda pendurada na contracapa).
Nele, descobri duas cartas de Charlotte Bronte, irmã da Emily, explicando por que usaram codinomes masculinos para publicar, dentre otras cositas más.
RESUMÃO PEDAGÓGICO
Eram três irmãs - Charlotte, Emily e Anne - que gostavam de inventar histórias. Após a morte de sua mãe, passaram parte da vida em um internato e viviam bastante isoladas do mundo. Charlotte explica que escolheram os pseudônimos Ellis, Currer e Acton Bell, para driblar o machismo da época.
Conta como foi difícil a publicação dos primeiros manuscritos do Morro, até que um certo escritor de prestígio avaliou o trabalho de Emily, destacando que, apesar da linguagem vulgar utilizada no livro e da crueza de suas personagens, este deveria ser visto como a obra de alguém que vive a realidade que retrata: o isolamento, a falta de estudo e o drama excessivo que assuntos corriqueiros podem ganhar ao serem vivenciados longe do burburinho da cidade.
OBSERVAÇÃO IMPORTANTÍSSIMA!
Ninguém se lembra mais do famoso autor que validou a Emily. Já da Emily... Charlotte também fala sobre a "escuridão" presente na alma de Emily. Na época, dar vida a personagens como Catherine Earnshaw e Heathcliff - o casal central da trama - era visto como algo bastante estranho, beirando o demoníaco. A que bem poderia servir um livro como esse? Que lição tirar de uma história tão sombria e repleta de superstições?
CONEXÃO SEM VOLTA COM O PASSADO
Fiquei ali toda boba, como quem tem acesso ao #makingof de seu filme favorito. Mas o que me pegou de jeito foi a parte em que Charlotte retrata o processo criativo de sua outra irmã, Anne, autora do livro A Inquilina de Wildfell Hall. Nesse trecho, comenta as duras críticas que o livro recebeu, dizendo que a escolha do tema nada tinha a ver com a personalidade da autora.

Segundo Charlotte, Anne observava as atitudes mais vis a que um ser humano poderia se dedicar e, por mais que escrevê-las lhe fizesse mal, sentia-se na obrigação de relatá-las, como forma de impedir que voltassem a ocorrer. Vejam o que ela diz (tradução minha):
"[...] ruminava o que presenciava até acreditar ser um dever reproduzi-lo em cada detalhe (obviamente, com personagens, incidentes e situações fictícias) como um aviso a outros. Odiava seu trabalho, mas seguia nele. Quando chamada à razão em relação a esse tema, encarava tais raciocínios como uma tentação à autoindulgência. Tem que ser honesta: não pode polir, suavizar ou esconder."
ENCONTRANDO UMA IRMÃ PERDIDA
Gente! Só sei que, lendo esse trecho, eu me reconheci. Essa história de dever autoimposto para com a verdade, somada ao que, talvez, hoje chamássemos de "sincericídio criativo" e o lance de pensar um trabalho que ela amasse como autoindulgência... Aquilo bateu e ficou.
Cheguei a pensar que Charlotte podia estar super equivocada (coisa de irmã, né?), mas o fato é que não importava. O fato é que, enquanto eu lia um texto escrito em setembro de 1850, alguém que andava encaixotado em minha mente, sob o rótulo de autora importante da Literatura Inglesa, ganhou humanidade.
Eu, aos 28 anos, na cidade grande, conectada a meio mundo via web, cheia de possibilidades de publicação mais ou menos formal de minhas idéias, era parte da história dessas mulheres e de tantas outras que vieram antes e depois delas ao mundo. Pensei, maravilhada, em quantas barreiras elas superaram - tanto as práticas, quanto aquelas que não fazem mais o menor sentido (como criar ou não personagens que retratem o mal social; usar ou não linguagem vulgar). Se bem que, pensando bem, será que não fazem mais sentido mesmo?
DETALHES NADA PEQUENOS
Fizeram tudo isso sem chegar aos 40, ok? Emily morreu em Dezembro de 1848, aos trinta anos de idade, e Anne em abril de 1949. Doenças sem nome, falta de vontade de viver, corpo que esmorece, cai de cama e não levanta mais. Assim eram muitas mortes naqueles tempos.
Aos 28, eu lia aquela carta e já não importava se eu algum dia ainda publicaria um livro. Todos os meus esforços e dilemas como autora naquele momento - os inúmeros manuscritos não publicados, as cartas de rejeição, o medo de não ter nenhum talento - tornaram-se parte de uma História Humana Universal.
Peguei-me imaginando quantas mulheres, naquela mesma época, escreviam, sem que saibamos seus nomes. Ainda assim, seus escritos são parte da vitória daquelas que chegam. Não há livro ou artigo científico que aprisione as milhões de formas através das quais estamos conectados. De alguma maneira, e por um breve instante, eu sou Anne, e Charlotte, e Emily - sou algo maior do que eu mesma.
Hoje, quando leio O Morro, lembro-me de como duas despretensiosas cartas escritas há séculos ainda são ainda capazes de atingir corações que lhes eram futuros. Catherine e Heathcliff representam um tipo de amor que, hoje, seria compreendido como abusivo, em toda sua intensidade e torpeza, sem deixar de esclarecer como a sociedade o constrói. Fico feliz que Emily tenha tido coragem, que eu possa ter sabido de Anne e que elas ainda estejam presentes.
Isso é o que meu livro de estimação tem feito por mim.