Sabine Mendes Moura
O Peso do Sal
Atualizado: 16 de abr. de 2020
Um conto-imagem sobre pessoas que voltam (ou ficam)

Estridente, logo cortante. E as pernas longas se esticavam, esverdeando ainda mais o quase azul da lagoa. Não era dia de lagoa calma nem se tratava de água doce – estimava-se que fosse a única de água salgada da região, com um canal permanente para o mar bravio, um canal permanente para a farsa do não ser totalmente lagoa. Por isso, boiar nela, mais que fácil, era quase uma obrigação. E Julia decidira resistir ao peso do sal, decidira abrir os olhos mergulhada no soro repleto de algas e peixes, decidira arder de dentro para fora, mas não flutuar. Não flutuaria mais. Não flanaria mais pela vida. Não fugiria mais ao peso dos anos, não atenderia ao chamado do futuro – aos filhos brincando na areia, bocas escancaradas de fome, braços abertos exigindo colo – sucumbiria à honestidade do fracasso, de não ser lagoa ou de ser lagoa-lago, salgada, prenha de passado.
Submersa, os pulmões ainda resistiam. Os braços batiam freneticamente, movendo o caldo primordial de água fraudulenta para cima e mantendo seu corpo quase sentado no musgo ao fundo. Não, não era verde, mas quase verde quando os pés, as unhas dos pés, roçavam a areia assentada removendo-lhe em uma fantasmagórica neblina aquática de pó, alga e concha. Decidiu. Ali, a felicidade. Ali, a total liberdade. Ali, seu lugar de desconforto mais querido, mais honesto, em meio a toda risonha falsidade.
Mas ouviu a voz. Emergiu. Percebeu que se distanciara da costa, mas nadou o mais rápido que pôde de encontro àquela voz. Passou pelos filhos na praia – distraídos da humanidade da mãe –, distribuindo meia dúzia de orientações lacônicas para que se vestissem e a acompanhassem, ignorando seus pedidos de "só mais um pouquinho".
Voltaram para casa, pela rua de terra – o barro entranhando nos dedos murchos e nas sandálias, as crianças amuadas, a noite avançando e Julia seguindo o lampião. Lampião que ninguém mais via ou, se via, não contava. E seu avô, forte guia, explicando sobre o querosene, sobre todos os perigos e a importância de seguir.
Era o chamado.
Um chamado para voltar aos dias e às horas, iluminado pela luz e a voz de quem, quando vivo, fora farsa salgada, sem deixar de ser doce presença depois do fim de suas águas.